17 April 2009

SE EU FOSSE HOMEM


Eu cheguei lá em forma de envelope.
Um papel com textura macia e de um azul clarinho, bonito.
O carteiro deve ter-me entregue pessoalmente e só ele pôde ver aquele sorriso bonito estampado no rosto dela.
Naturalmente os olhos ficaram apertados de alegria e a face corada, como ficava quando a timidez me permitia desabrochar sentimentalidades, mesmo que confusas ou certeiras demais. Porque nem sempre eu guardava tudo o que me sacudia, mas uma vez por outra recuava algumas nas atitudes, para evitar reacções negativas.
Ela desligou a chaleira que fervia a água para fazer chá - ela faz sempre chá a meio da tarde - foi para o quarto e sentou-se na beirinha da cama.
O azul das paredes parecia mudar para um azul também clarinho, como o do envelope, como um degradé, e sem entender o porquê da minha visita... ela rasgou-me.
Com os mesmos dedos finos e macios com que me acariciava os cabelos quando o sono baixava as pálpebras e me fervia os pensamentos que não passavam, por um triz, dos pensamentos dela... muito embora eu quisesse.
Certamente ela tinha sentimentos sinceros e mais leves que o meu e na certa não sofria como sofro.
E então, ela puxa-me sem medo, do todo. Talvez tenha pensado que eu teria chegado em forma de envelope apenas como mais um dos meus mimos.
E eu cheguei com o cheiro do mesmo perfume que uma vez ela disse ser bom.
Tudo que tinha dentro de mim de azul, foi posto em vermelho, para intensificar o que sentia todos os dias e me fazia faltar o ar.
Então ela segura-me com toda aquela delicadeza que só ela tem.
Passa pausadamente os olhos bonitos de sempre, com uma única certeza, a de não estar a perceber nada sobre a minha súbita visita, apesar de eu ter lhe arrancado um leve sorriso a princípio.
Sei que no início seria de uma estranheza maior do que a que me possui, mas eu não podia silenciar, não desta vez.
E com palavras alheias, descrevi o que era fumegante e bonito, de uma beleza que eu jamais poderia partir sem antes dizer:

"Peço que não faça como a gente vulgar, que é sempre reles; que não me volte a cara quando passe por si, nem tenha de mim uma recordação em que entre o rancor. Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infância, que se amaram um pouco quando meninos, e, embora na vida adulta sigam outras afeições e outros caminhos, conservam sempre, num escaninho da alma, a memória profunda do seu amor antigo e inutil"*
e...
eu fui, mas deixei com ela o envelope e tudo o que crescia em mim, mesmo que sem o seu consentimento.
*Excerto de um poema de Fernando Pessoa

9 nhận xét :

salvoconduto said...

Que se ponha à tabela porque pode ser condenado à extinção...

Abreijos.

Patti said...

E depois de uma carta de amor como esta, carregadinha de fortes emoçoes, só queria também ter visto a cara dela.

E ainda o senhor Pessoa, dizia que as Cartas de amor eram Ridículas!

Paula Crespo said...

Estas visitas vestidas de azul-claro são sempre bem-vindas. Normalmente raras, nos tempos que correm.
Belo texto!
Bjs

f@ said...

Ainda escrevemos cartas de AMOR RIDÍCULAS... onde se pousam lábios em folhas perfumadas!....


..

Beijinhos

ANTONIO SARAMAGO said...

Cartas de AMOR!!!Como eu as adorava de escrever e receber.
Minha Srª Drª, como é essa de e se fosses Homem?
Eu se tivesse sido Mulher, deveria ser a maior Desavergonhada do mundo!!!
Sobre as tuas palavras, isto parece-me que não vai mesmo ter salvação.
BFDS, com alegria..

Pitanga Doce said...

Nos primeiros tempos, lá na aldeia, o carteiro vinha de bicicleta (os que a tinham) e batiam palmas ao portão chamando pelo nome que vinha na correspondência.

Hoje, a menina que bate à porta do prédio, é formada em alguma coisa que não conseguiu emprego, vem dirigindo uma carrinha vermelha e leva dois segundos para despejar tudo o que traz nas caixas individuais. É mais ou menos assim: vem aí a rapariga...já foi. hehehe Isto é aí.

O daqui é cegueta e deixa as correspondências erradas.

boa tarde Blue, e vai a Coimbra quando puderes.

Xanda said...

Cartas de amor... quem as não tem!
Bonito, só podia ser obra do grande senhor Pessoa.
Hoje deu-me p/ andar a visitar os amigos da net, tenho andado distante mas espero passar cá mais vezes, bjnhs querida blue.

Justine said...

Excelente, a tua criação a partir do excerto do Pessoa, ou incluindo o excerto do Pessoa: tons suaves para afectos antigos, em gestos já quase esquecidos. Belo...

1/4 de Fada said...

Belíssima ideia a tua, pôr Pessoa a escrever uma carta de amor tão bonita...