Iam a caminho de casa já umas onze da noite. Noite fria para Verão e um pouco húmida de orvalhos.
Carregadas das compras. Uma ida ao centro comercial repentina. Um jantar noite dentro. Um dia que se pretende que acabe tarde ou nunca acabe. É difícil adivinhar o texto das suas vidas. Daquele momento. (Duas pizzas em duas caixas de uma marca conhecida em duas mãos apressadas por chegar a casa. O jantar tardio parece-me óbvio e vinho também) Uma delas vai extenuada no seu passo cansado mas rápido e nos dois pesados sacos que tilintam o som de vidro. Dois cheios e pesadas sacos de plástico desse lixo que não questionamos.
Talvez de coisas essenciais como latas de conservas e vegetais para uma salada. Tabaco. Azeitonas. Batatas fritas ou aperitivos de queijo. Talvez nada disso. Pasta dos dentes ou sabonetes. Champô com amaciador. Preservativos por entre pensos higiénicos ou tampões. A revista que fala daquilo que é importante. Da programação de televisão. Do horóscopo. De culinária. Das novelas.
Talvez de coisas essenciais como latas de conservas e vegetais para uma salada. Tabaco. Azeitonas. Batatas fritas ou aperitivos de queijo. Talvez nada disso. Pasta dos dentes ou sabonetes. Champô com amaciador. Preservativos por entre pensos higiénicos ou tampões. A revista que fala daquilo que é importante. Da programação de televisão. Do horóscopo. De culinária. Das novelas.
Iam apressadas e felizes. Depois das compras as pessoas sentem-se sempre mais pessoas. Mais gente. Que ter é ser!
- Ele disse que aparece lá para as onze e meia. Mas sabes como é (agora desvanece-se em compasso mais lento alguma coisa. Alguma dúvida.) o António tem de deixá-la ir para a cama. E primeiro ainda tem que adormecer os filhos.
- Espero que não vá dar-se algum imprevisto. Nunca se sabe…com as mulheres.
(Com as mulheres e com os homens).
Não há nuvens no céu. Está uma noite transparente e a lua, ah a lua, a lua está com aquela luz suficiente para que tudo à volta pareça ser.
Não há nuvens no céu. Está uma noite transparente e a lua, ah a lua, a lua está com aquela luz suficiente para que tudo à volta pareça ser.
- Sabes que ela está desconfiada e aí pode ser matreira. Um dia destes ainda vais ter chatices.
- E queres que faça o quê? Eu estou farta desta merda, ele já esteve para pedir o divórcio se não fosse muito caro. Sabes que aquilo é preciso gastar muito dinheiro. Tenho medo é que as pizzas arrefeçam. Espero que não se demore muito. Estou estoirada e depois já não consigo fazer nada. Dá-me o sono.
A cadência aumenta.
Olho para o chão e na humidade negra do asfalto, quase um espelho, aquela luz suficiente, aquela luz quase neutra, e à volta as coisas desvanecendo-se sem importância alguma. Sem a importância que tiveram durante o dia.
Olho para o chão e na humidade negra do asfalto, quase um espelho, aquela luz suficiente, aquela luz quase neutra, e à volta as coisas desvanecendo-se sem importância alguma. Sem a importância que tiveram durante o dia.
Alternamos caminhos e eu deixei de pensar nos sacos com, seguramente, garrafas de vinho. Seguramente duas ou mais, mas pelo menos pelo ritmo do vidro coincidente com a dança das suas nádegas, duas.
Aquela luz suficiente demorou os meus passos distraídos na beleza obrigatória da penumbra. Na visão dos vultos e das suas diminutas sombras, quais almas penadas.
Gemidos distantes que no entanto, punham em expectativa a próxima esquina.Aquela luz suficiente demorou os meus passos distraídos na beleza obrigatória da penumbra. Na visão dos vultos e das suas diminutas sombras, quais almas penadas.
Raio de quotidiano de vida.
16 nhận xét :
E ainda bem que sonham. E sonhamos.
Excelente texto.
(Espero que o António não tenha conseguido sair de casa, :))
e como diz o meu netinho ( É A VIDA)
Passe pelo meu cantinho, tenho uma mensagem para os amigos e as fotos dos homens da minha vida
um abraço
Raio de vida, mesmo...
O quotidiano, as relações entre as pessoas, os segredos mais íntimos revelados em gestos banais, a teia intricada das emoções à flor da pele, o cenário exacto para levantar o véu que nos dissimula durante o dia....
Um texto tão pequeno e tão intenso, sublime pelo conteúdo e pela forma, na arte de personificar diferentes narradores em simultâneo.
É verdade. Há quaotidianos muito difíceis, muito matreiros...
Bjs
São vidas. É o que mais temos por aí, quantas vezes mesmo ao nosso lado...
Beijos azuis
Espero que as pizzas não tenham arrefecido...e nem ela.
bom dia, Bluevelvet
Excelente texto! Não é fácil escrever desta maneira sobre um quotidiano baço... mas é precisamente um conjunto de pequenos nadas, entre momentos felizes e outros mais obscuros, que nos preenche a existência.
Bjs
Tens uma maneira de escrever muito própria, muito directa,muito realista.
Conseguimos passar para o lado de lá mesmo não estando a viver as situações, e isso é muito bom!!!!
Beijinhos
Descrição mais que correcta do nosso quotidiano. Como a vida é difícil..., mas muito mais dífícil para aqueles que nem dinheiro para compras têm e em vez de viver sobrevivem.
Beijinhos
Um texto muito bem escrito, mesmo "à Bluevelvet", daqueles a que nos habituaste... descreves na perfeição uma situação tão vulgar e que sempre me impresionou precisamente por isso, por ser tão frequente e aceite tão facilmente. Como é que se consegue ter uma vida dupla por vezes durante anos a fio?
Glup... é mesmo
Sonhar é um verbo infinito ... em todos os aspectos...mas os sonhos são feitos da essência das pessoas ...
beijinhos das nuvens
Que retrato duro e certeiro! Tão bom o retrato, que me senti um pouco deprimida com estas vidas tristes,sem brilho nem orgulho.
(quanto ao felino é capaz de ser difícil, mas pode ser que tenhas sorte!Comigo é mais fácil, é só combinarmos:)))
Não entendo quotidianos destes. E para mais, parece que cada vez, são em maior número.
Muito bem demonstrado por ti e mais uma vez cheio da sensibilidade que já nos habituas-te.
Bem... se ele não aparecer, ela que me telefone.
Não para o substituir, mas estragar o vinho é que não!!!!
;o)
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