Corria o ano de 1926.
A Baixa de Lisboa era o centro da vida da cidade. Durante todo o dia os trabalhadores afadigavam-se nas suas tarefas diárias e à noite recolhiam às suas casas, situadas num dos bairros populares.
As ruas tinham nomes conforme os profissionais que nelas tinham as suas lojas e oficinas: Douradores, Sapateiros, da Prata, do Ouro, dos Fanqueiros.
Adelino estava a acabar o curso de Direito para ser advogado.
Todos os dias passava à porta de Mestre João, um dos sapateiros mais conhecidos da rua com o mesmo nome.
Tinha já alguma idade mas continuava a fazer os sapatos, as alpergatas, os socos com a mesma mestria de outros tempos.
A vida não tinha sido fácil para este homem, que além de ter começado o ofício muito cedo, fora marcado com um defeito de nascença que o tornava diferente de todos os outros: Mestre João era corcunda.
Mas Adelino não se importava com isso. Gostava do seu ar bondoso, das histórias que contava e gostava sobretudo de entrar na oficina e ficar a olhar para todas aquelas ferramentas, a maior parte das quais nem sabia para que serviam: a máquina de coser giratória, o martelo de bater sola, a grosa de sapateiro, a tenaz, os vasadores, o arremachador de agulheta. Estavam ordeiramente pendurados nas paredes e Mestre João explicava-lhe para que serviam.
Também gostava muito do Bobbi, um cãozinho rafeiro preto que o sapateiro tinha recolhido e adoptado numa fria noite de Inverno. Nunca saía da soleira da porta e aceitava de bom grado as festas que todos os passantes lhe faziam.
De todas as ferramentas havia uma de que gostava muito e outra que receava. A que Adelino mais gostava era a grosa de sapateiro, uma peça invulgar formada por duas partes e nas duas faces repetida. Metade lima, metade grosa.
A que temia era uma outra: a sovela. Adelino era capaz de ficar horas a ver como Mestre João trabalhava com ela sem se ferir. A sovela era um instrumento constituído por uma espécie de agulha direita ou curva e encavada com que os sapateiros e os correeiros furavam o cabedal para o coser. Mas à velocidade com que o seu amigo cosia, Adelino não entendia como ele nunca furava uma mão.
E achava graça às várias caixas de tintas de muitas cores, todas estrangeiras e a fita métrica de sapateiro cuja graduação era em centímetros e pontos.
Todo o bairro gostava de Mestre João e o respeitava, excepto um bêbado desnaturado que todos os dias passava à porta de Mestre João e o cumprimentava:
- Bom dia, ó marreco!
Há anos que o fazia e há anos que Mestre João o avisava que um dia ainda se ia arrepender. Mas ele não ligava às palavras do velho sapateiro e continuava cumprimentando-o sempre com a mesma frase estafada e ofensiva:
- Bom dia, ó marreco.
No Verão desse ano, Adelino concluiu o curso com média de 18 valores o que encheu de orgulho a família e todos os trabalhadores da rua.
Antes de ir de férias foi despedir-se de Mestre João que lhe deu um abraço sentido e os Parabéns.
Em Setembro quando voltou, no 1º dia em que foi trabalhar para o seu escritório na Rua dos Sapateiros, passou pela oficina de Mestre João, mas foi com surpresa que verificou que a mesma se encontrava fechada.
Foi com o coração apertado e temendo o pior, que se informou se tinha acontecido alguma coisa ao amigo.
Era grave, sim, mas pelo menos não tinha morrido.
Contaram-lhe que uma manhã, Alfredo, passando pela porta de Mestre João o tinha cumprimentado como fazia há mais de vinte anos:
- Bom dia, ó marreco.
E o velho sapateiro tinha-se levantado do banquinho em que trabalhava e furara-lhe a garganta com a sovela que tinha na mão.
O bêbado ficara no chão a esvair-se em sangue até ser transportado para o Hospital de S. José, antigo Hospital Real de Todos-os-Santos, onde já tinha chegado morto e Mestre João preso.
Adelino apressou-se a visitar o amigo na Penitenciária e depois de ouvir a sua história resolveu ser seu defensor.
O julgamento decorreu sem sobressaltos de maior, todas as testemunhas abonaram o excelente carácter de Mestre João, e chegou o último dia.
O dia em que Adelino iria fazer as suas alegações.
Como era de praxe, levantou-se, ajeitou a toga e começou:
- Data Vénia,
Exmo. Senhor Dr. Juiz,
Exmo. Procurador da República,
Caro Colega,
Minhas Senhoras e Meus Senhores.
Os magistrados, bem como todos os presentes fixaram os olhos em Adelino preparando-se para o ouvir.
Mas ele repetiu:
- Data Vénia,
Exmo. Senhor Dr. Juiz,
Exmo. Procurador da República,
Caro Colega,
Minhas Senhoras e Meus Senhores.
O Juiz olhou com estranheza para os colegas enquanto a assistência se entreolhava.
Mas Adelino continuou:
- Data Vénia,
Exmo. Senhor Dr. Juiz,
Exmo. Procurador da República,
Caro Colega,
Minhas Senhoras e Meus Senhores.
Na sala do tribunal da Boa Hora o silêncio era de espanto e não para ouvir o que o jovem advogado tinha a dizer. Nunca se tinha visto uma coisa assim. Parecia que estava gago ou engasgado. O único que sorria era Mestre João.
Fazendo uma pausa, Adelino retomou a palavra:
- Data Vénia,
Exmo. Senhor Dr. Juiz,
Exmo. Procurador da República,
Caro Colega,
Minhas Senhoras e Meus Senhores.
Dessa vez o Juiz perdeu a paciência e invectivou-o:
- Sr. Dr. Já cumprimentou o Tribunal e os presentes. Agora continue que já está a fazer-nos perder tempo.
O Dr. Adelino baixou a cabeça como uma criança apanhada em falta, limpou a garganta e fez ouvir a sua voz:
- Data Vénia,
Exmo. Senhor Dr. Juiz,
Exmo. Procurador da República,
Caro Colega,
Minhas Senhoras e Meus Senhores.
O Juiz levantou-se irritado e disse-lhe:
- Sr. Dr. O senhor está a desrespeitar o tribunal ou não está no seu juízo perfeito. Faça o favor de continuar. Já estamos todos mais que cumprimentados.
Adelino dirigiu-se para o centro da sala e continuou:
- Peço desculpa, mas não pretendi ofender ninguém. Limitei-me a cumprimentar respeitosamente todos os presentes. Mesmo assim, todos ficaram impacientes e até pensaram que estava a faltar-lhes ao respeito.
O que acham que o acusado sentiu sendo chamado de corcunda pela vítima, durante 20 anos?
Adelino tinha demonstrado o que queria.
Ganhou a sua 1ª causa.
Mestre João foi condenado a 1 ano de prisão com pena suspensa e voltou à sua oficina onde continuou a trabalhar mais alguns anos, tendo por companheiro o seu fiel Bobbi.
E o Dr. Adelino começou ali aquela que viria a ser uma carreira mais do que brilhante.
A Baixa de Lisboa era o centro da vida da cidade. Durante todo o dia os trabalhadores afadigavam-se nas suas tarefas diárias e à noite recolhiam às suas casas, situadas num dos bairros populares.
As ruas tinham nomes conforme os profissionais que nelas tinham as suas lojas e oficinas: Douradores, Sapateiros, da Prata, do Ouro, dos Fanqueiros.
Adelino estava a acabar o curso de Direito para ser advogado.
Todos os dias passava à porta de Mestre João, um dos sapateiros mais conhecidos da rua com o mesmo nome.
Tinha já alguma idade mas continuava a fazer os sapatos, as alpergatas, os socos com a mesma mestria de outros tempos.
A vida não tinha sido fácil para este homem, que além de ter começado o ofício muito cedo, fora marcado com um defeito de nascença que o tornava diferente de todos os outros: Mestre João era corcunda.
Mas Adelino não se importava com isso. Gostava do seu ar bondoso, das histórias que contava e gostava sobretudo de entrar na oficina e ficar a olhar para todas aquelas ferramentas, a maior parte das quais nem sabia para que serviam: a máquina de coser giratória, o martelo de bater sola, a grosa de sapateiro, a tenaz, os vasadores, o arremachador de agulheta. Estavam ordeiramente pendurados nas paredes e Mestre João explicava-lhe para que serviam.
Também gostava muito do Bobbi, um cãozinho rafeiro preto que o sapateiro tinha recolhido e adoptado numa fria noite de Inverno. Nunca saía da soleira da porta e aceitava de bom grado as festas que todos os passantes lhe faziam.
De todas as ferramentas havia uma de que gostava muito e outra que receava. A que Adelino mais gostava era a grosa de sapateiro, uma peça invulgar formada por duas partes e nas duas faces repetida. Metade lima, metade grosa.
A que temia era uma outra: a sovela. Adelino era capaz de ficar horas a ver como Mestre João trabalhava com ela sem se ferir. A sovela era um instrumento constituído por uma espécie de agulha direita ou curva e encavada com que os sapateiros e os correeiros furavam o cabedal para o coser. Mas à velocidade com que o seu amigo cosia, Adelino não entendia como ele nunca furava uma mão.
E achava graça às várias caixas de tintas de muitas cores, todas estrangeiras e a fita métrica de sapateiro cuja graduação era em centímetros e pontos.
Todo o bairro gostava de Mestre João e o respeitava, excepto um bêbado desnaturado que todos os dias passava à porta de Mestre João e o cumprimentava:
- Bom dia, ó marreco!
Há anos que o fazia e há anos que Mestre João o avisava que um dia ainda se ia arrepender. Mas ele não ligava às palavras do velho sapateiro e continuava cumprimentando-o sempre com a mesma frase estafada e ofensiva:
- Bom dia, ó marreco.
No Verão desse ano, Adelino concluiu o curso com média de 18 valores o que encheu de orgulho a família e todos os trabalhadores da rua.
Antes de ir de férias foi despedir-se de Mestre João que lhe deu um abraço sentido e os Parabéns.
Em Setembro quando voltou, no 1º dia em que foi trabalhar para o seu escritório na Rua dos Sapateiros, passou pela oficina de Mestre João, mas foi com surpresa que verificou que a mesma se encontrava fechada.
Foi com o coração apertado e temendo o pior, que se informou se tinha acontecido alguma coisa ao amigo.
Era grave, sim, mas pelo menos não tinha morrido.
Contaram-lhe que uma manhã, Alfredo, passando pela porta de Mestre João o tinha cumprimentado como fazia há mais de vinte anos:
- Bom dia, ó marreco.
E o velho sapateiro tinha-se levantado do banquinho em que trabalhava e furara-lhe a garganta com a sovela que tinha na mão.
O bêbado ficara no chão a esvair-se em sangue até ser transportado para o Hospital de S. José, antigo Hospital Real de Todos-os-Santos, onde já tinha chegado morto e Mestre João preso.
Adelino apressou-se a visitar o amigo na Penitenciária e depois de ouvir a sua história resolveu ser seu defensor.
O julgamento decorreu sem sobressaltos de maior, todas as testemunhas abonaram o excelente carácter de Mestre João, e chegou o último dia.
O dia em que Adelino iria fazer as suas alegações.
Como era de praxe, levantou-se, ajeitou a toga e começou:
- Data Vénia,
Exmo. Senhor Dr. Juiz,
Exmo. Procurador da República,
Caro Colega,
Minhas Senhoras e Meus Senhores.
Os magistrados, bem como todos os presentes fixaram os olhos em Adelino preparando-se para o ouvir.
Mas ele repetiu:
- Data Vénia,
Exmo. Senhor Dr. Juiz,
Exmo. Procurador da República,
Caro Colega,
Minhas Senhoras e Meus Senhores.
O Juiz olhou com estranheza para os colegas enquanto a assistência se entreolhava.
Mas Adelino continuou:
- Data Vénia,
Exmo. Senhor Dr. Juiz,
Exmo. Procurador da República,
Caro Colega,
Minhas Senhoras e Meus Senhores.
Na sala do tribunal da Boa Hora o silêncio era de espanto e não para ouvir o que o jovem advogado tinha a dizer. Nunca se tinha visto uma coisa assim. Parecia que estava gago ou engasgado. O único que sorria era Mestre João.
Fazendo uma pausa, Adelino retomou a palavra:
- Data Vénia,
Exmo. Senhor Dr. Juiz,
Exmo. Procurador da República,
Caro Colega,
Minhas Senhoras e Meus Senhores.
Dessa vez o Juiz perdeu a paciência e invectivou-o:
- Sr. Dr. Já cumprimentou o Tribunal e os presentes. Agora continue que já está a fazer-nos perder tempo.
O Dr. Adelino baixou a cabeça como uma criança apanhada em falta, limpou a garganta e fez ouvir a sua voz:
- Data Vénia,
Exmo. Senhor Dr. Juiz,
Exmo. Procurador da República,
Caro Colega,
Minhas Senhoras e Meus Senhores.
O Juiz levantou-se irritado e disse-lhe:
- Sr. Dr. O senhor está a desrespeitar o tribunal ou não está no seu juízo perfeito. Faça o favor de continuar. Já estamos todos mais que cumprimentados.
Adelino dirigiu-se para o centro da sala e continuou:
- Peço desculpa, mas não pretendi ofender ninguém. Limitei-me a cumprimentar respeitosamente todos os presentes. Mesmo assim, todos ficaram impacientes e até pensaram que estava a faltar-lhes ao respeito.
O que acham que o acusado sentiu sendo chamado de corcunda pela vítima, durante 20 anos?
Adelino tinha demonstrado o que queria.
Ganhou a sua 1ª causa.
Mestre João foi condenado a 1 ano de prisão com pena suspensa e voltou à sua oficina onde continuou a trabalhar mais alguns anos, tendo por companheiro o seu fiel Bobbi.
E o Dr. Adelino começou ali aquela que viria a ser uma carreira mais do que brilhante.
Nota: Ouvi esta história, era eu bem pequenina, em casa de meus pais da boca do próprio Adelino...da Palma Carlos.
19 nhận xét :
Muito interessante e curiosa a tua história Velvet. Sabes que ainda hoje, quando preciso de forrar sapatos para alguma cerimónia, é à rua dos Sapateiros que eu vou?
Gostei muito dos teus pormenores da descrição da oficina e de todos os seus utensílios, é isso que enriquece uma história bem contada como esta.
Deliciosa!
Queres saber uma coisa? Na minha vida conheci dois sapateiros, um deles era corcunda o Maurício, onde me sentava num banquinho a ouvir as sua dissertações sobre a vida e muito principalmente sobre os padres...
Um abraço para ele esteja onde estiver!
Nota-se a ternura com que nos fazes o relato.
O cuidado na escrita, a minudência do detalhe, a cumplicidade para com os dois intervenientes principais
Uma história contada... em azul.
Mais um excelente texto para o curriculum!
PS - Espero que a pena ainda hoje seja igual, pois também há um ou dois a quem me apetece espetar coisas na garganta...
;o)
Beijinhos
A tua forma de nos prenderes ás tuas palavras é verdadeiramente fascinante.
Quem diria que o DR Palma Carlos tinha começado a sua Fama dessa maneira.
Nota máxima para mais esta história.
SRA DRA.Qual é a máxima que se pode dar?
Beijinho a voar com o vento a pregar-se no teu rosto.
A grande diferença entre uma boa história muito bem escrita e uma história magnífica muitissimo bem escrita está aqui bem patente. A vida real pode servir de base às histórias imaginadas que lemos, mas nunca nos fica o sabor que esta me deixou...
Lições de vida, de moral, de princípios, de respeito e educação, inspirados em factos que ultrapassam a ficção.
O mundo teria muito a ganhar se todos aprendessemos com os rastos que a História nos deixa...
Prendinhas azuis
Não calculas como gostei de ler esta história que ouvias contada pelo próprio Adelino...agora, aquela rua terá um sabor especial quando lá passar....Jhs muitos.
Velvet,
é uma história muito antiga, mas sempre actual, só nos demonstra que a paciência tem limites e qualquer pessoas pode perder as estribeiras.
Mas gostava que fosse até ao meu cantinho, pois publiquei um poema que o meu filho escreveu quando tinha 16 anos, aliás foi uma altuta bastante dificil para ele e para mim como mãe a criá-lo sozinha e com todas as dificuldades do mundo, por muito que façamos nunca podemos substituir a outra parte ausente.
Mas em parte o seu blog ajudou-me a deitar cá para fora o que me vai na alma e isso faz-me sentir bem,
obrigada pelas suas histórias tão reais
Com todo o pormenor, uma história interessante e uma lição.
Beijos.
Genial!!!
Com a realidade podemos escrever uma boa ao dia à dia as pessoas simples da nossa sociedade e ainda por cima, profisssões que hoje já são tão raras por aqui, mas que nos fazem recuar no tempo e ir a sítios recôndidos da nossa imaginação, onde ainda existem os sapateiros, os limpa chaminés, os
amuladores (que vinham em dias que
obrigatoriamente seriam aqueles em que iria chover)e que acontecia
a maior parte das vezes por incrível que pareça.
Mas infelizmente qualquer dia ficam mesmo só na nossa imaginação.
Beijinhos
Conheci essa história quando andava na Faculdade de Direito. A grande diferença é que era despojada de todos os detalhes que a Bluevelvet narra e lhe dão um sabor muito mais picaresco e ternurento.
História brilhante simples comovente...o rigor dos detalhes...
A paciência tem limites... e até um bom homem é capaz de uma loucura quando humilhado...
O brio e o talento profissional quando executados com gosto e por causas como esta que descreves tem um mérito maior...
Beijinhos das nuvens
Sorrisos,
não te aconselho:))
E depois, não há muitos Palma Carlos por aí.
Beijokas
Obrigada a todos que por aqui passaram.
Veludinho,
Fabuloso!...
Admiro a habilidade mental.
Tretices azulinhas para ti
http://tretas-da-vida.blogs.sapo.pt/
Excelente história! E uma boa estratégia de defesa: uma bocadinho arriscada, mas vá... ;);)
Bjs
Muito, muito boa, Velvet! Até o estilo da escrita é compatível com a época. Excelente narrativa, ótima descrição do ambiente. Quase senti a atmosfera do lugar.
No entanto, se fizesse parte do corpo de jurados, votaria pela condenação do sapateiro. Sabe que sou meio à moda antiga, fã do código de Hamurabi.
Um beijo!
P.S.: Na minha infância e juventude, fiquei célebre no bairro por tornar-se um excelente criador de apelidos. Depois de ler o seu conto, só agora percebi o risco de tal ofício.
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