Poucos sabiam do jardim secreto na vetusta e almiscarada casa da Quinta. Sebes, cameleiras, buxo e lilases escondiam o granito rasteiro que suportava, altiva, a frontaria. Mirado por fora, o jardim não chamava a atenção. Era contido por um gradeamento verde, nem alto, nem baixo, portões também verdes rangendo ao abrir. Enganava os passantes a banalidade da impressão. Não sendo jardim mas gente, dobraria cautelas - fosse eu de as ter ou sequer de as prever! - pelo ar sonso das sebes desmentido por lampejos matreiros. Culpa directa do verniz das folhas das cameleiras regateando, a quem passa, o sol.
Não sendo grande, tinha a dimensão entre o normal e o destacado, assim fazendo vénia à (in)decisão social herdada pela família proprietária. É resmoneio cuspido entre-dentes nas costas de quem a sorte ou os berços sucessivos bafejaram que, se bem vasculhada, na família se encontrará a avó forneira.
Dito injusto por confundir farruscas com deslustres ancestrais, assertivo ao dar como inexistentes genealogias alvas de mácula, se bastardias, devassos, avarentos e sacanas contarem.
O segredo do jardim começava onde acabava o telhado do verde compacto das latadas. Pelas duas e meia da tarde, chinelavam passos nas lajes de granito que apainelavam o chão. Seguros. Precisos.
Rumavam a um altar exposto ao cruzamento ogival da abóbada celeste, onde pontificava uma mesa acolitada por cadeiras e espreguiçadeiras, tudo em sólida verga. Suavizam os assentos coxins de florido cretone. O chinelado quedou-se. Quem esticar o pescoço para lá das colunas de buxo onde curva a alameda, verá pés nus, balouçando, malcriados. Cosendo a curiosidade às sebes, subirá o olhar dos pés às pernas, estas convergindo em breve outeiro. Mirada decidida avançará rente às bordas dos vales suaves, olhos postos nas colinas gémeas desafiando o sol. Numa mão um livro, na outra nada.
Pestanas longas sombreavam o alto da face.
O cabelo solto por fora da espreguiçadeira.
A minha pele solta. Nua.
Oficiando ritual pagão.
Não sendo grande, tinha a dimensão entre o normal e o destacado, assim fazendo vénia à (in)decisão social herdada pela família proprietária. É resmoneio cuspido entre-dentes nas costas de quem a sorte ou os berços sucessivos bafejaram que, se bem vasculhada, na família se encontrará a avó forneira.
Dito injusto por confundir farruscas com deslustres ancestrais, assertivo ao dar como inexistentes genealogias alvas de mácula, se bastardias, devassos, avarentos e sacanas contarem.
O segredo do jardim começava onde acabava o telhado do verde compacto das latadas. Pelas duas e meia da tarde, chinelavam passos nas lajes de granito que apainelavam o chão. Seguros. Precisos.
Rumavam a um altar exposto ao cruzamento ogival da abóbada celeste, onde pontificava uma mesa acolitada por cadeiras e espreguiçadeiras, tudo em sólida verga. Suavizam os assentos coxins de florido cretone. O chinelado quedou-se. Quem esticar o pescoço para lá das colunas de buxo onde curva a alameda, verá pés nus, balouçando, malcriados. Cosendo a curiosidade às sebes, subirá o olhar dos pés às pernas, estas convergindo em breve outeiro. Mirada decidida avançará rente às bordas dos vales suaves, olhos postos nas colinas gémeas desafiando o sol. Numa mão um livro, na outra nada.
Pestanas longas sombreavam o alto da face.
O cabelo solto por fora da espreguiçadeira.
A minha pele solta. Nua.
Oficiando ritual pagão.
14 nhận xét :
que belas memórias.
bjs
Li várias vezes antes de comentar.
Há muito que não via assim um texto tão denso e rico de pormenores adjectivados por aqui.
Local secreto e inatingível, cofre-forte de emoções e brincadeiras infantis, esta é uma memória fantástica, Velvet, daquelas cujo registo merece cada uma das palavras que escolheu para o descrever.
Beijinhos
Bonitas recordações de uma Menina na altura, talvez um pouco endiabrada, só tenho dúvidas numa coisa.
Pelo que relatas, da-me ideia de que esse jardim, essa quinta, seja Nortenha e pelo que eu li num outro atrazado post, essa mesma (secalhar outra)quinta seria no Alentejo.
Perdoa-me a minha ignorancia.
Que intenso emaranhado de emoções, tão secretas quanto o jardim, tão infantis quanto as memórias.
Beijos
fabulinha da memória de infância
memórias secretas como o jardim
nem sempre sabia onde estava
uma magia da floresta encantada
e a menina brincava com os elfos
e dançava com as pequenas fadas
e o tempo quase parava e tudo
era exactamente como devia ser:
o jardim secreto e o portão verde
a latada suspensa e o silêncio
o buxo e a sebe sempre suaves
o cabelo solto e a pele nua
o tempo parado e a felicidade
o céu e o veludo sempre azuis...
Amiga,
Um texto quase impenetrável como o jardim que descreves e as memórias belas que descreves.
Adorei!
Ná
Estou com a Si, Velvet. E tb tive de ler duas vezes.
Um texto poderoso! Carregado de imapcto emocional. Duro e absolutamente credível.
Talvez um dos teus melhores posts.
NÃO TE PERCAS DESTA MENINA!!!!!!!!!!!
Ah, importantíssimo, a música fica-lhe a matar!
Há quem n ligue, mas eu faço questão sp das músicas acasalarem com os textos. Nem sempre consigo, mas tento-o de todas as vezes.
no teu caso ficou perfeito.
José Luis,
obrigada por tão lindo comentário.
Veludinhos da Miss Velvet
Pitanga,
é difícil manter essa menina viva. Mas vou tentando.
Beijinhos.
Patty,
obrigada pelos teus dois comentários.
São comentários assim que fazem de ti a vizinha especial que és: generosa, atenta e assertiva.
Sabendo da qualidade da tua escrita, mais valor têm. Nem a música te escapou.
Obrigada e mais uma vez Parabéns pelo aniversário do Ares.
Obrigada a todos os que passaram por aqui.
São as melhores memórias, as mais puras, as mais marcantes! Que as memórias nunca se apaguem dos nossos jardins secretos!!!
muitos beijinhos!!!
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