21 January 2010

(3) MEMÓRIAS DE INFÂNCIA


Poucos sabiam do jardim secreto na vetusta e almiscarada casa da Quinta. Sebes, cameleiras, buxo e lilases escondiam o granito rasteiro que suportava, altiva, a frontaria. Mirado por fora, o jardim não chamava a atenção. Era contido por um gradeamento verde, nem alto, nem baixo, portões também verdes rangendo ao abrir. Enganava os passantes a banalidade da impressão. Não sendo jardim mas gente, dobraria cautelas - fosse eu de as ter ou sequer de as prever! - pelo ar sonso das sebes desmentido por lampejos matreiros. Culpa directa do verniz das folhas das cameleiras regateando, a quem passa, o sol.
Não sendo grande, tinha a dimensão entre o normal e o destacado, assim fazendo vénia à (in)decisão social herdada pela família proprietária. É resmoneio cuspido entre-dentes nas costas de quem a sorte ou os berços sucessivos bafejaram que, se bem vasculhada, na família se encontrará a avó forneira.
Dito injusto por confundir farruscas com deslustres ancestrais, assertivo ao dar como inexistentes genealogias alvas de mácula, se bastardias, devassos, avarentos e sacanas contarem.
O segredo do jardim começava onde acabava o telhado do verde compacto das latadas. Pelas duas e meia da tarde, chinelavam passos nas lajes de granito que apainelavam o chão. Seguros. Precisos.
Rumavam a um altar exposto ao cruzamento ogival da abóbada celeste, onde pontificava uma mesa acolitada por cadeiras e espreguiçadeiras, tudo em sólida verga. Suavizam os assentos coxins de florido cretone. O chinelado quedou-se. Quem esticar o pescoço para lá das colunas de buxo onde curva a alameda, verá pés nus, balouçando, malcriados. Cosendo a curiosidade às sebes, subirá o olhar dos pés às pernas, estas convergindo em breve outeiro. Mirada decidida avançará rente às bordas dos vales suaves, olhos postos nas colinas gémeas desafiando o sol. Numa mão um livro, na outra nada.
Pestanas longas sombreavam o alto da face.
O cabelo solto por fora da espreguiçadeira.
A minha pele solta. Nua.
Oficiando ritual pagão.

14 nhận xét :

pedro oliveira said...

que belas memórias.
bjs

Si said...

Li várias vezes antes de comentar.
Há muito que não via assim um texto tão denso e rico de pormenores adjectivados por aqui.
Local secreto e inatingível, cofre-forte de emoções e brincadeiras infantis, esta é uma memória fantástica, Velvet, daquelas cujo registo merece cada uma das palavras que escolheu para o descrever.
Beijinhos

ANTONIO SARAMAGO said...

Bonitas recordações de uma Menina na altura, talvez um pouco endiabrada, só tenho dúvidas numa coisa.
Pelo que relatas, da-me ideia de que esse jardim, essa quinta, seja Nortenha e pelo que eu li num outro atrazado post, essa mesma (secalhar outra)quinta seria no Alentejo.
Perdoa-me a minha ignorancia.

paulofski said...

Que intenso emaranhado de emoções, tão secretas quanto o jardim, tão infantis quanto as memórias.

Beijos

josé luís said...

fabulinha da memória de infância

memórias secretas como o jardim
nem sempre sabia onde estava
uma magia da floresta encantada
e a menina brincava com os elfos
e dançava com as pequenas fadas
e o tempo quase parava e tudo
era exactamente como devia ser:
o jardim secreto e o portão verde
a latada suspensa e o silêncio
o buxo e a sebe sempre suaves
o cabelo solto e a pele nua
o tempo parado e a felicidade
o céu e o veludo sempre azuis...

Fernanda Ferreira - Ná said...

Amiga,

Um texto quase impenetrável como o jardim que descreves e as memórias belas que descreves.
Adorei!

Patti said...

Estou com a Si, Velvet. E tb tive de ler duas vezes.
Um texto poderoso! Carregado de imapcto emocional. Duro e absolutamente credível.
Talvez um dos teus melhores posts.

Pitanga Doce said...

NÃO TE PERCAS DESTA MENINA!!!!!!!!!!!

Patti said...

Ah, importantíssimo, a música fica-lhe a matar!
Há quem n ligue, mas eu faço questão sp das músicas acasalarem com os textos. Nem sempre consigo, mas tento-o de todas as vezes.
no teu caso ficou perfeito.

BlueVelvet said...

José Luis,
obrigada por tão lindo comentário.
Veludinhos da Miss Velvet

BlueVelvet said...

Pitanga,
é difícil manter essa menina viva. Mas vou tentando.
Beijinhos.

BlueVelvet said...

Patty,
obrigada pelos teus dois comentários.
São comentários assim que fazem de ti a vizinha especial que és: generosa, atenta e assertiva.
Sabendo da qualidade da tua escrita, mais valor têm. Nem a música te escapou.
Obrigada e mais uma vez Parabéns pelo aniversário do Ares.

BlueVelvet said...

Obrigada a todos os que passaram por aqui.

Sofá Amarelo said...

São as melhores memórias, as mais puras, as mais marcantes! Que as memórias nunca se apaguem dos nossos jardins secretos!!!

muitos beijinhos!!!