Todos os dias morre um amor.
Quase nunca percebemos, mas todos os dias morre um amor. Às vezes de forma lenta e gradativa, quase indolor, após anos e anos de rotina. Às vezes melodramaticamente, como nas piores novelas mexicanas, com direito a discussões vexaminosas capazes de acordar o mais surdo dos vizinhos.
Morre numa cama de hotel ou em frente à televisão de domingo. Morre sem beijo antes de dormir, sem mãos dadas, sem olhares compreensivos, com gosto de lágrima nos lábios. Morre depois de telefonemas cada vez mais espaçados, cartas cada vez mais concisas, beijos que esfriam aos poucos.
Morre da mais completa e letal inanição.
Todos os dias morre um amor.
Às vezes com uma explosão, quase sempre com um suspiro.
Todos os dias morre um amor, embora nós, românticos mais na teoria que na prática, relutemos em admitir. Porque nada é mais doloroso do que a constatação de um fracasso. De saber que, mais uma vez, um amor morreu. Porque, por mais que não queiramos aprender, a vida ensina-nos sempre alguma coisa.
E esta é a lição: amores morrem.
Todos os dias um amor é assassinado.
Com a adaga do tédio, a cicuta da indiferença, a força do escárnio, a metralhadora da traição.
A caixa com os presentes devolvidos, os ponteiros tiquetaqueando no relógio, o silêncio insuportável depois de uma discussão: todo o crime deixa evidências.
Todos nós fomos assassinos um dia. Há aqueles que, como o Lee Harvey Oswald, se refugiam em salas de cinema vazias. Ou preferem esconder-se debaixo da cama, ao lado do bicho papão. Outros confessam a sua culpa em altos brados e fazem de penico os ouvidos de infelizes garçons. Há aqueles que negam, veementemente, participação no crime e buscam novas vítimas em salas de chat ou pistas de discotecas, sem dor ou remorso. Os mais perigosos aproveitam a sua experiência de criminosos para escrever livros de auto-ajuda, com nomes paradoxais como "O Amor Inteligente" ou romances açucarados de quiosques de jornal, do tipo "A Paixão Tem Olhos Azuis", difundindo para o mundo ilusões fatais aos corações sem cicatrizes.
Existem os amores que clamam por um tiro de misericórdia: corcéis feridos.
Existem os amores-zumbis, aqueles que se recusam a admitir que morreram. São capazes de perdurar anos, mortos-vivos sobre a Terra teimando em resistir à base de camas separadas, beijos burocráticos, sexo sem tesão.
Estes não querem ser sacrificados e, à semelhança dos zumbis hollywoodianos, também se alimentam de cérebros humanos e definharão até se tornarem laranjas chupadas.
Existem os amores-vegetais, aqueles que vivem em permanente estado de letargia, comuns principalmente entre os amantes platônicos que recordarão até o fim de seus dias o sorriso de quando ela era novinha e ele um Elvis Presley da fase havaiana.
Mas titubeio em dizer que isso possa ser classificado como amor (Bah, isso não é amor. Amor vivido só da cintura pra baixo não é amor).
Existem, por fim, os amores-fênix. Aqueles que, apesar da luta diária pela sobrevivência, dos preconceitos da sociedade, das contas a pagar, da paixão que escasseia com o decorrer dos anos, dos almoços de família ao domingo, das cuecas penduradas no chuveiro, das toalhas molhadas sobre a cama e das brigas que não levam a nada, ressuscitam das cinzas a cada fim de dia e perduram: teimosos, belos, cegos e intensos.
Mas estes são raríssimos e há quem duvide de sua existência. Alguns chamam-nos de amores-unicórnio, porque são de uma beleza tão pura e rara que jamais poderiam ter existido, a não ser como lendas.
É por um amor assim que espero!