Embora sentindo enormemente a falta do filho, a saudade era colmatada pelos telefonemas constantes e as grandes cartas que ia escrevendo aos pais e eram lidas a toda a família.
O espanto na chegada a Deli, a confusão das ruas e o cheiro da cidade, o paraíso de Goa, a viagem de 14 horas para Bombaim num comboio apinhado, sentado durante 2 horas no hall da casa de banho, único lugar onde tinha luz suficiente para ler, Agra, Jaipur, o Taj-Mahal, tudo ele descrevia com pormenores.
Depois o civismo e a limpeza de Singapura, de novo a confusão de Bangkok e por fim Macau.
E as fotografias que sempre acompanhavam as cartas e mostravam um Besnico feliz e em poses de palhaço, algumas vezes.
Mostrava-se maravilhado com Macau, onde encontrava a cada esquina coisas que lhe faziam lembrar Portugal.
Foi com um misto de alívio e incredulidade que Bernardo e Catarina se aperceberam que o ano tinha passado e o filho estava para chegar.
A mãe preparou os pratos que ele mais gostava, o quarto foi limpo de alto a baixo, até os cães tiveram que se sujeitar a banhos antecipados para estarem lindos quando o dono chegasse.
A casa foi enfeitada com cartazes à americana de “ Welcome” e tudo estava em ordem quando ele aterrou.
Foi um dia de emoções fortes.
Chegou mais alto, dizia a mãe, ao que o pai respondia: - Que disparate, o rapaz já cresceu o que tinha a crescer!
Os irmãos pulavam-lhe em cima e chamavam-lhe chinês, os avós estavam encantados.
Já passava das 2 da manhã quando todos se foram embora, depois da distribuição de presentes, que foi um momento de exclamações de espanto, fosse pelas sedas, pelos souvenirs ou pelo lindíssimo anel de brilhantes com uma enorme safira que tinha trazido para a mãe.
E foi depois de todos saírem que Catarina se fechou no quarto do filho, e lhe passou os braços em volta num abraço muito apertado, como se fosse de novo um bebé e finalmente sentiu que ele estava de volta.
Era Agosto, pelo que após o pequeno-almoço em família, todos foram para o seu querido Guincho, onde Bernardo verificou orgulhoso que o filho tinha feito muitos progressos no surf.
O mês passou com toda a família em festa até que chegou a altura de decidir o que Besnico ia fazer da vida.
Os pais ficaram sem palavras quando ele disse que tinha decidido licenciar-se em Direito...na Universidade de Macau.
Já trazia todos os papéis, tinha-se informado de tudo, achava que o futuro obrigava a que se começasse a aprender mandarim, e por isto e mais aquilo, era isso que queria.
Pela primeira vez na vida, Catarina quis dizer um rotundo não às pretensões do filho.
Não queria separar-se dele de novo. O pai também não, e os irmãos embora mascarassem a sua tristeza com sonoros “ Ele é maluco”, sentia-se que não gostavam nem um pouco da ideia.
Mas ele estava determinado. Precisava do dinheiro dos pais, é certo, mas era o que queria fazer.
Então “ se era para felicidade dele, e para o seu futuro”, cederam.
O dia da partida, com todos os preparativos que tiveram que ser feitos, chegou depressa. Mais depressa do que todos desejavam.
Ficou combinado que os pais lá iriam no Natal e ele viria nas férias grandes.
No final, foram os pais e os irmãos, que se propuseram abdicar das mesadas em prol da viagem.
E assim se passaram 3 anos.
Martim já estava com 18 anos e pronto a entrar para a faculdade e Lourenço continuava o mafarrico de sempre.
Nesse ano, ao contrário do habitual, foi Besnico que veio a Portugal passar o Natal, porque os avós estavam velhotes e queriam vê-lo e porque todos tinham saudades de um Natal à portuguesa.
Foi um Natal maravilhoso, com toda a família reunida, com missa do galo, todos os doces da época e muito carinho.
Em Janeiro ele lá foi de novo, enquanto Martim recomeçava orgulhosamente as aulas na Católica.
- Isto vai ser uma família só de doutores, dizia ele na brincadeira, enquanto Lourenço ria e afirmava peremptório que não contassem com ele:
- Eu quero é fazer surf.
No final do mês de Janeiro, Bernardo estava no escritório quando recebeu um telefonema de Macau. Habituado aos telefonemas do filho, atendeu com um sorriso nos lábios, mas a voz que ouviu não era a de Besnico.
- Mr. Bernardo ...?
- Yes. Who’s calling?
- I’m Doctor Masao Takashimaya and I’m calling from Hospital Kiang Wu. I regret to inform that your son had an accident. He was hit by a bus and he is in a very bad condition. I sincere advise that you come here as soon as you can.
Bernardo murmurou qualquer coisa como:
- Vamos imediatamente. Obrigado. – e desligou mecanicamete.
Não queria acreditar no que estava a acontecer. Não podia ser verdade. Tinha que haver um engano. Só podia ser um engano. Afinal, eles sabiam lá, no meio daquela confusão de nomes, se tinha sido o filho a ter o acidente... O raio do médico nem inglês falava correctamente...
Meteu-se no carro e foi para casa, sem conseguir respirar e sem imaginar o que ia dizer a Catarina.
Quando chegou encontrou a mulher que se preparava para ir trabalhar.
Estranhando a hora, pensou que o marido estava doente, e mais certa ficou quando viu a sua palidez.
Mas quando ele se deixou cair no sofá da sala e lhe pediu com voz grave que se sentasse junto dele, percebeu que algo se passava:
- Qual deles? O que aconteceu com os meus filhos?
- Bernardo.
O marido não soube porque chamou o filho por esse nome. Nunca o fazia.
- O que é que tem? Não se está a sentir bem? – Catarina pensou que era o marido. Ela não tinha nenhum filho chamado Bernardo.
- Bernardo. Besnico.
Catarina levantou-se com os olhos muito abertos.
- O que tem Besnico? Está em Macau. Está bem, ou não está?
A esta altura Catarina já estava a falar muito depressa e caminhava freneticamente à frente do marido.
- Não está Catarina. Foi atropelado e está muito mal. Temos que ir já para lá.
- Então vamos. Estamos à espera de quê? Vá separar as suas coisas enquanto trato das viagens.
Dirigiu-se ao telefone, e em menos de uma hora tinha as viagens tratadas. Depois falou para a mãe e para os sogros, subiu ao quarto onde fez a sua mala e a do marido. Esperou que os filhos chegassem para almoçar e contou-lhes o que se passava.
A meio da tarde tinha tomado todas as providências para embarcarem para Macau nesse mesmo dia, via Frankfurt.
Nem por um momento parou para pensar no que se estaria a passar lá.
Tudo o que queria era chegar perto do seu menino. Tinha a certeza que assim que lá chegasse tudo se resolveria.
Só quando se sentou no seu lugar no avião e este descolou, se recostou na cadeira e deixou que finalmente as lágrimas lhe rolassem pela cara abaixo.
Por muitas horas de voo que Catarina tivesse, nunca tinha feito uma viagem que lhe parecesse tão longa.
Mal chegaram a Macau dirigiram-se ao Hospital onde foram postos ao corrente da situação do filho:
Besnico tinha sido atropelado por um autocarro, sofrera fracturas múltiplas, hemorragias internas e um grave traumatismo craniano.
Tinham-lhe aliviado a pressão para o estabilizarem, mas a única hipótese de tentarem salvá-lo era uma cirurgia que, no entanto, tinha muito poucas hipóteses de sucesso.
Catarina e Bernardo dirigiram-se para os Cuidados Intensivos onde o filho se encontrava e mal o reconheceram na figura inerte que jazia no leito e no meio de todos os fios e ligaduras que o envolviam.
Mas apertou a mão da mãe quando a sentiu junto de si.
Nessa noite Besnico foi operado e faleceu na operação.
Quando deram a notícia aos pais, Bernardo pôs os braços à volta de Catarina mas foi um corpo inerte que apanhou no ar, impedindo-a de cair.
Catarina desmaiou, entrou em estado de choque e esteve dias sedada sem tomar conhecimento do que a rodeava.
Pela primeira vez desde que a conhecera, Bernardo estava sozinho para tomar as providências que tinham que ser tomadas, acompanhar Catarina e gerir a sua própria dor.
As primeiras démarches a serem feitas era tratar da remoção do corpo para Portugal.
Bernardo nem desconfiava do calvário que o esperava. A burocracia, o facto de não conhecer bem os costumes e os passos a dar, levaram-no a contratar um advogado. Assim, o processo poderia ser agilizado e ele podia passar mais tempo com Catarina, que continuava internada.
Uma tarde o advogado chamou-o ao escritório dizendo que tinha um assunto a tratar com ele.
Quando entrou na sala, além do advogado, encontrava-se também uma rapariga de traços orientais, muito bonita, pequenina, que fazendo uma pequena reverência se apresentou dizendo:
- My name is Hiroko.
Bernardo pensou que fosse a secretária do advogado.
Sentou-se e esperou ouvir aquilo que queria: que estava tudo resolvido e que podia voltar para Portugal com a mulher e o filho.
Bernardo recusava referir-se-lhe como “ o corpo do filho”.
Mas foi outra a história que ouviu:
Hiroko era namorada do filho e estava grávida de uma menina. Besnico pensava apresentá-la aos pais no Verão e casar em Portugal.
Agora Hiroko não tinha saída: solteira e grávida de uma criança do sexo feminino teria que dar a criança para adopção.
- A menos que o Sr. Engenheiro e a sua mulher fiquem com a criança e a adoptem.
A Bernardo parecia-lhe estar a reviver uma história pela qual já tinha passado há muitos anos. Parecia um castigo dos céus, mas porquê, se nem ele nem a mulher tinham feito nada de mal a ninguém?
Tentando recompor-se e raciocinar, respondeu ao advogado que o olhava expectante:
- Mas adoptá-la como, se a criança é minha neta?
- Isso não importa. Para levar a criança daqui, só adoptando-a.
Enquanto esta conversa decorria, Hiroko mantinha os olhos baixos como se nada daquilo lhe dissesse respeito.
Bernardo não sabia que fazer.
Tinha que tirar a mulher do hospital e trazer o filho para Portugal. Segundo o advogado, tinha que permanecer em Macau dois meses para poder adoptar a criança, e ainda faltavam 2 meses para ela nascer. O que dava quatro meses. Ele não queria ficar quatro meses em Macau.
- Porque raio na nossa vida é sempre tudo tão difícil? Porque raio para termos uma alegria temos sempre que passar por tanto sofrimento?
Isto era o que passava pela cabeça de Bernardo, enquanto o silêncio no austero escritório do advogado era total.
Mas ninguém lhe podia dar a resposta. Nem mesmo tinha Catarina para o ajudar a decidir, como tinha a contecido sempre desde que se tinham encontrado.
De volta ao hotel, percebeu que estava por conta dele. Tinha que fazer tudo sozinho.
No dia seguinte voltou ao escritório do advogado e disse-lhe o que resolvera:
- Assim que a minha mulher estiver em condições de viajar, vamos embora com o nosso filho. Deixo dinheiro numa conta para que nada falte a Hiroko. Quando faltar um mês para o parto, volto e fico cá até a criança nascer.
Entretanto vá tratando dos papéis da adopção, para assim que tudo estiver legalizado poder levar a minha neta comigo.
Uma semana depois Bernardo e uma cambaleante Catarina voltaram para Portugal, num avião que transportava no porão o caixão com o filho.
Foi com extrema dificuldade que Catarina assistiu ao funeral. Praticamente nunca mais falara desde que recebera a notícia da morte de Besnico e passava os dias deitada, e dopada com tranquilizantes.
Finalmente a vida tinha-a golpeado de uma forma da qual parecia que ela não conseguiria recuperar.
Quase não comia, tinha perdido dez quilos, e vestida toda de preto com os cabelos pretos, parecia ainda mais magra.
Nem os outros filhos conseguiam arrancar-lhe um sorriso.
Entretanto, um mês tinha passado e ela nada sabia de Hiroko nem da criança que ia nascer.
Depois de vir da missa do mês, à qual Catarina não conseguiu assitir, Bernardo sentou-se a seu lado na cama e segurando-lhe as mãos, foi-lhe contando com cuidado e escolhendo as palavras, a história de Hiroko e do bébé.
Catarina ouviu tudo, mas foi como se o seu cérebro não conseguisse apreender uma única palavra do que o marido lhe estava a contar.
Bernardo percebeu que tinha que fazer o que havia a ser feito, sozinho.
Pediu ao pai que ficasse na empresa, pediu à sogra que viesse para sua casa para ficar com Catarina, despediu-se dos filhos e apanhou de novo um avião que o levaria a Macau.
Um mês depois, como previsto, a bébé nasceu.
Era morena, com a pele muito branquinha, cabelos em pé e olhos amendoados.
Hiroko disse-lhe que ela e Besnico tinham decidido que se chamasse Kuiko.
Bernardo ficou mais 2 meses em Macau para poder trazer a pequena Kuiko com ele.
As notícias de Catarina não eram animadoras: continuava num estado quase catatónico.
Por outro lado incomodava-o a calma e resignação com que Hiroko abrira mão da filha.
De tal modo, que lhe propôs que ela viesse também para Portugal.
Mas ela não quis e ele nunca a viu deitar uma lágrima.
Voltou com a neta para Portugal, embora nos documentos ela figurasse como sua filha, não sem antes ter deixado uma soma que lhe pareceu suficiente para que Hiroko reconstruisse a sua vida.
Tinha apenas 20 anos.
A casa que em tempos estava sempre cheia de uma algazarra que às vezes até o cansava, estava em silêncio quando chegou.
Os filhos esperavam-no no jardim da vivenda, ansiosos por verem a trouxinha que vinha dentro do porta-bébés.
Catarina estava no quarto, na cama.
Bernardo subiu com a pequena Kuiko e depositou-a nos braços da mulher.
Passaram alguns minutos até que ela olhasse para a criança.
E passou aquilo a que a Bernardo pareceu uma eternidade, até que lhe pegasse e que pela primeira vez chorasse a sério, desde que o filho tinha morrido.
Parecia que a comporta finalmente tinha rebentado.
Só que aparentemente Catarina não percebia quem era a criança. Embalou-a como a uma boneca, ao mesmo tempo que cadenciadamente repetia: - A minha menina, a minha menina.
Bernardo entrou em pânico. Tudo menos a mulher enlouquecer. Ligou atabalhoadamente para o psiquiatra que estava a tratá-la e pediu-lhe que fosse lá a casa.
O médico chegou pouco depois. Segundo ele havia um fenómeno entre a negação da morte do filho e ao mesmo tempo a sua substituição pela nova bébé.
Medicou-a, mas disse a Bernardo para deixar ficar a criança com ela. Confiava que o seu instinto maternal a levasse a reagir quando Kuiko precisasse dela.
E foi o que aconteceu.
Quando a bébé começou a chorar com fome, ela pediu a Bernardo que fosse fazer o biberon.
Não que o fizesse de forma normal. Havia muita coisa que teria que voltar ao lugar na cabeça de Catarina, já que o coração talvez nunca mais cicatrizase.
Com o tempo, foi melhorando e embora triste foi aceitando o desaparecimento de Besnico. Ou melhor, resignou-se, mas nunca mais foi a Catarina alegre de outros tempos.
Continuou só a ser uma excelente mãe e a amar o marido como no primeiro dia.
Catarina tem hoje 67 anos.
Encontrei-a há tempos, passeando com Kuiko. Reparei que a trata por mãe, mas não fiz perguntas sobre isso.
Só lhe perguntei se, caso pudesse voltar atrás, mudaria algo na sua vida.
Olhou-me com os olhos brilhantes de lágrimas:
- Só uma coisa. Jamais deixaria Besnico ir para Macau.